sábado, 19 de setembro de 2009

Letras S o L T a s

Encostado à janela, sentia o corpo balançar a cada marcha mal passada. Alguns poucos se arriscavam a levantar diante do sacolejo costumeiro do coletivo. Umas vinte cabeças tombavam juntas a cada curva acentuada e a minha, não diferente, ia junto.

É engraçado ver a monotonia de quem faz sempre a mesma viagem. Os rostos, suados e assimétricos pelo calor que faz franzir as sombracelhas, pareciam sempre conhecidos. Não que eu já os tenha visto realmente, mas pelo fato de não trazerem novidades. Sem espanto parecem costumeiros. Da distância do meu lugar cativo, sempre à direita nos bancos próximos a porta, percebo claramente quem é novato no trajeto. O semblante traz preocupação na escolha do lugar onde sentar, se o lugar pega sol ou não durante o percurso, quem poderia ser uma boa companhia para a viagem e outras variáveis psicológicas tolas que antecedem o depósito da cansada bunda no assento.

Da suja janela estiquei o olho para os transeuntes apáticos zanzando na rua lá embaixo...ambulantes tentavam comprovar no grito a qualidade duvidosa da água que vendem. Fazia calor. Muito calor. Entre um arranque e outro do ônibus, um velho se distraiu e ao passar da roleta quase caiu...esbravejou algo que parecia ter a ver com a mãe do motorista e saiu jogando as moedas no fundo do bolso e mastigando a própria lingua. Uma moça, em apoio ao velho senhor, ameaçou falar algo, mas logo foi abafada pelo mascate que insistia em vender a sua garrafa d'água pra mim...só porque eu estava olhando ele pela janela ele interpretou, na sua visão comercial, como uma oportunidade de negócio....

Êta mundo maluco...a miséria está a nossa frente todos os dias e quase nunca a percebemos. Naquele dia ela veio disfarçada de gente...um rapaz moribundo com um menino no colo...sujo.... e esquecido. Sem nome como todos os que vejo da janela. Tinha apenas o braço estendido ao coletivo e o outro amparando o pequeno ao ombro. Fez o sinal para que ônibus parasse. Ao perceber que ele seria o único passageiro a embarcar naquele ponto, mais uma marcha mal colocada foi engatada e o carro acelerou forte como se resmungasse. Aquele braço estendido lá na rua ficou acompanhado de um olhar triste... da cor do asfalto. Olhos da cor do asfalto. Pensei o que passaria por aquela cabeça descabelada e confusa...será que ele concluiria, no meio da sua apatia, que sua miséria não era digna de embarcar naquele veículo ? Não... Acho que nem isso. Ele não deve ter pensado nada...nestas horas o silêncio acompanha a decepção. Só consegui saber disso e simular um possível pensamento porque ainda tinha no estômago algo proteico... e ele talvez nada mais tinha de proteico na vida. Nada a pensar ou a concluir...sabia que estava esquecido...rejeitado e sem nome...

Do meu lado não se sentou ninguém naquele dia. Achei que deveria ter sido pela minha barba por fazer. Talvez minha aparência tivesse sido uma variável negativa nas decisões dos que escolhiam lugar...sacolejei o mesmo caminho até meu ponto. Tombei minha cabeça nas mesmas curvas...mas até hoje ainda não esqueci aquele olhar ficando pra trás no ponto do ônibus. No ponto do esquecimento.

3 comentários:

  1. Olá Edkiller,

    Gostei bastante do seu jeito de escrever. Você escreve com que periodicidade ? Gostaria de acompanhar melhor suas postagens. Parabens e um abraço.
    M.K.

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  2. Olá, EdKiller!
    Interessante seu jeitinho...
    Aqueles que refletem sobre situações do dia a dia, podem desenvolver uma empatia sobre o drama dos outros e conseguem valorizar sua própria vida.
    Valeu!

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  3. Poxa... que bom que teve a inspiração de olhar, olhar de verdade as pessoas e os fatos. Seria muito mais fácil fechar os olhos e dar uma boa dormida durante o longo percurso que você faz até o trabalho.

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